26 de junho de 2025 – Em entrevista sobre o Dia Internacional contra a Tortura, o subprocurador-geral do Brasil e membro do Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU, Luciano Mariz Maia, alerta que “a tortura institucional resiste a reformas formais porque se ancora em desigualdades sociais, racismo estrutural e naturalização da violência”.
Assinalada em 26 de junho, a data internacional foi estabelecida pela resolução 52/149 da Assembleia Geral da ONU para unir esforços em direção à erradicação total da tortura e ao funcionamento efetivo da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.
A entrevista na integra:
Como foi sua trajetória no enfrentamento à tortura no Brasil?
Sou de uma geração que viveu sua adolescência sob a ditadura militar no Brasil, e teve de lutar por democracia e pelo respeito aos direitos humanos. Desde cedo compreendi que a tortura não é um desvio ocasional de conduta, mas um fenômeno estrutural. Mas foi em 2000, acompanhando a visita ao Brasil do então Relator Especial da ONU, Sir Nigel Rodley, eu já membro do MPF, passei a integrar um conjunto de esforços institucionais voltados à documentação da prática da tortura, com vistas ao estabelecimento de políticas institucionais capazes de iniciar investigações e responsabilização, e, por fim, o estabelecimento de sistema nacional de prevenção e enfrentamento à tortura. Nessa época, participei da articulação e da atuação conjunta entre órgãos governamentais, o MPF, entidades da sociedade civil e organizações internacionais.
Ao longo das décadas seguintes, contribui com o processo de criação do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), inclusive com a elaboração de documentos normativos, apoio à fiscalização direta em unidades de privação de liberdade e colaboração com o próprio Mecanismo Nacional e o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT). Na esfera acadêmica, dedico-me há 35 anos ao ensino do Direito Constitucional e dos Direitos Humanos na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Em minha tese de doutorado, intitulada Do Controle Judicial da Tortura Institucional no Brasil, propus que a tortura cometida por agentes públicos não fosse vista apenas como prática individual, mas como reflexo de arranjos institucionais que toleram ou até incentivam a violência como forma de controle social. Analisei a dificuldade do sistema judicial em dar respostas eficazes, em razão de pactos de silêncio, da invisibilidade da violência e da banalização de práticas que deveriam ser intoleráveis. Costumo sintetizar esse fenômeno com quatro “ii”: invisível, indizível, insindicável e impunível (em inglês corresponderia aos 4 “uu”: a tortura é unseen (não vista), untold (não contada), uninvestigated (não investigada) e unpunished (não punida).
Como o senhor avalia o papel do Ministério Público no sistema de prevenção?
O Ministério Público brasileiro possui um desenho constitucional singular. Não é apenas titular da ação penal pública, mas também responsável por exercer controle externo da atividade policial e assegurar o respeito aos direitos fundamentais por parte de autoridades públicas. Essa combinação de atribuições coloca o Ministério Público numa posição privilegiada para agir contra a tortura, seja para prevenir, seja para reprimir.
Nos últimos anos, o MPF evoluiu muito nesse campo. Além de apoiar institucionalmente o MNPCT, desenvolveu protocolos próprios de fiscalização de presídios, unidades socioeducativas e hospitais psiquiátricos, frequentemente em articulação com defensorias públicas e conselhos de direitos humanos. Diversos procuradores passaram a compreender a tortura como fenômeno sistêmico, e não apenas como fato isolado.
O poder de investigação do Ministério Público é reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente para realizar controle externo da atividade policial. Isso foi reforçado quando declarou a inconstitucionalidade de tentativas de desmonte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. O STF afirmou o caráter essencial da prevenção à tortura e reconheceu o dever do Estado brasileiro de manter estruturas autônomas, técnicas e permanentes para esse fim. Esse reconhecimento fortalece o MP como agente de transformação e legitima sua atuação ao lado dos mecanismos de prevenção.
Quais serão suas prioridades como membro do SPT?
O Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura (SPT), do qual passei a fazer parte em janeiro de 2025, exerce um papel essencial no monitoramento de compromissos assumidos pelos Estados signatários do Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura (OPCAT). Meu objetivo é fortalecer o diálogo entre o SPT, os mecanismos nacionais de prevenção, e as instituições de justiça e segurança, sobretudo com países africanos parte no OPCAT, e, entre esses, os de língua portuguesa.
Pretendo contribuir para que o SPT:
- Reforce a importância de visitas regulares e in loco aos locais de privação de liberdade;
- Apoie os mecanismos nacionais na superação de obstáculos práticos, como restrições orçamentárias e interferências políticas;
- Valorize experiências locais bem-sucedidas, que combinem inspeção com escuta ativa de pessoas custodiadas;
- Aperfeiçoe suas metodologias de acompanhamento pós-visita, para assegurar que as recomendações tenham efeito concreto.
- Contribua para que as instituições nacionais de supervisão e controle de lugares de privação da liberdade monitorem riscos estruturais e oportunidades de ocorrências de práticas de tortura ou tratamento desumano ou degradante;
- Fomente nos órgãos do poder judiciário e do ministério público o exercício das funções de supervisão, fiscalização e controle, com a diligência devida, para que os responsáveis pela gestão e administração de lugares de privação da liberdade desempenhem suas funções em conformidade com as obrigações internacionais.
Na perspectiva ampla de prevenção, adotada pelo SPT, este órgão da ONU pode e deve colaborar para ampliar a capacidade institucional de promotores, defensores, policiais e agentes penitenciários, não apenas para coibir, mas para prevenir práticas que desumanizam o trato com pessoas privadas de liberdade.
Qual sua visão sobre a prevenção da tortura?
Prevenir a tortura não é apenas uma exigência jurídica, é um imperativo ético e político. A tortura é expressão extrema do arbítrio do Estado sobre corpos vulnerabilizados. Em muitos países da América Latina, incluindo o Brasil, ela atinge de forma desproporcional pessoas negras, pobres e jovens. Por isso, não basta tipificá-la ou puni-la formalmente. É necessário enfrentar as condições que permitem que ela continue sendo praticada — seja em delegacias, presídios, hospitais, instituições psiquiátricas ou unidades de internação para adolescentes.
A prevenção exige ações permanentes, como:
- Inspeções regulares;
- Registro e controle rigoroso das ocorrências;
- Formação ética e técnica dos operadores do sistema penal;
- Participação social na construção de políticas públicas;
- Garantia de acesso à justiça para as vítimas;
- Responsabilização dos perpetradores.
Como costumo dizer, a tortura institucional se alimenta da indiferença. O papel do SPT, nesse contexto, é dar visibilidade ao que muitos preferem manter escondido: as práticas de violência autorizadas, legitimadas, toleradas ou simplesmente ignoradas pelas instituições estatais.
Qual a relevância de um Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura?
O MNP é a face mais próxima do sistema internacional na realidade de cada país. Ele é previsto para atuar com abordagem e metodologia que refletem a atuação do SPT, mas onde o SPT não pode estar diariamente: nas visitas periódicas, nas recomendações específicas, na mediação com autoridades locais. É por meio dele que se revela o cotidiano da privação de liberdade. É também ele que pode agir de forma imediata para prevenir tortura, maus-tratos e outras formas de violência institucional.
Para cumprir sua função, o MNP precisa de:
- Independência funcional e administrativa;
- Recursos financeiros adequados;
- Garantia de acesso irrestrito a todas as unidades de privação de liberdade;
- Proteção contra retaliações para vítimas e denunciantes;
- Diálogo permanente com o SPT, com o sistema de justiça e segurança e com a sociedade civil.
Sem essas condições, o MNP se torna simbólico. Com elas, pode salvar vidas.
FIM
Para saber mais, siga @onuderechoshumanos nas redes e visite a página do Dia Internacional contra a Tortura: https://www.un.org/es/observances/torture-victims-day