Fale conosco
Menu

OPINIÃO | Afrodescendentes na América do Sul: reconhecimento, justiça e desenvolvimento

Compartilhe em:

Compartilhar no twitter
Compartilhar no facebook
Compartilhar no linkedin
Compartilhar no email
Compartilhar no print
Crianças de famílias Gangá Longobá próximas a seu local sagrado, Cuba. © Sergio Leyva Seiglie, They Are We Project

9 de setembro de 2021 – O representante para a América do Sul da ONU Direitos Humanos, Jan Jarab, publicou esta semana um artigo de opinião no jornal paraguaio El Nacional, sobre a situação das pessoas afrodescendentes na região. A publicação foi em decorrência do primeiro Dia Internacional de Pessoas Afrodescendentes, comemorado no último dia 31 de agosto.

Leia o artigo a seguir:

A música, as palavras, a história, as tradições: a influência afrodescendente permeia a identidade latino-americana de tal forma que é impossível compreendê-la sem o acervo cultural proveniente da África e que em sua interação com outras maneiras de vida – originárias e estrangeiras –, obteve características únicas em nosso continente.

Apesar de sua inestimável contribuição em todos os países da América do Sul, a cultura afrodescendente tem sido subestimada há muito tempo em toda a região, vítima de invisibilização, da negação e do estigma.

Em países como a Argentina ou Chile, as pessoas afrodescendentes enfrentam tamanha falta de reconhecimento que às vezes é desconhecida a própria existência de comunidades afro e seu papel na construção das identidades nacionais. A situação não é muito diferente no Paraguai, onde existem poucos estudos sobre a população afrodescendente, sua composição e características. Isso resulta em um desconhecimento discriminatório contra esse setor da população, que de acordo com estimativas – na ausência de dados confiáveis – era mais preponderante em termos demográficos há 200 anos. 

Em outros países, a cultura e identidade afrodescendente são muito mais visíveis, inclusive reconhecidas em grandes celebrações tradicionais que atraem visitantes de todo o mundo. Mas ainda assim em países como Brasil, Equador, Peru ou até Uruguai, onde a histórida da escravização transatlânctica é notória e a população afrodescendente numerosa (ou maioria em algumas áreas), a discriminação racial e o racismo seguem enraizados, reproduzidos pelas retórias de ódio e aprofundando as tensões sociais. 

Consequentemente, as pessoas afrodescendentes com frequência enfrentam discriminação no acesso y aplicação da justiça, taxas alarmantes de violência e o perfilamento racial por parte de forças de segurança que – tendo o estigma como única base – as identifica como potenciais delinquentes somente por conta de sua cor de pele. Operações como a que ocorreu recentemente no bairro carioca de Jacarezinho, Brasil, representam os mecanismos desproporcionais, seletivos e discricionários no policiamento e um uso excessivo da força contra as pessoas e comunidades afrodescendentes, o que alimenta o ciclo de violência e mortes em setores já marginalizados, afetando seriamente sua saúde mental e qualidade de vida. 

Além disso, a pandemia de COVID-19 revelou outras dimensões da discriminação racial: no âmbito dos direitos econômicos, sociais e culturais, as pessoas afrodescendentes geralmente vivem em maiores níveis de pobreza que outros grupos, o que se traduz em déficits no acesso a moradia adequada, à educação, à saúde, assim como no que se refere a proteção social, emprego e renda, o que afeta as mulheres afrodescendentes especialmente. 

A América do Sul deve redobrar seus esforços para transformar essa realidade marcada pela discriminação e pelo racismo. Com essa meta, e em boa medida graças ao impulso inesgotável da sociedade civil, alguns países geraram avanços promissores no âmbito do reconhecimento: entre outros, com a criação do Dia Nacional das pessoas afrodescendentes e da cultura afro na Argentina, o recente reconhecimento por lei do povo tradicional afrodescendente chileno, ou o projeto de lei que reconhece a população afroparaguaia como minoria étnica, cuja sanção e promulgação é esperada em um futuro próximo.

Outra área que os Estados devem seguir avançando é o levantamento de dados desagregados, por meio de censos nacionais e pesquisas de status socioeconômico. Incluir variáveis estatísticas sobre diversidade cultural, a partir das instituições nacionais de estatísticas, é um ponto de partida para conhecer com precisão a quantidade de pessoas que se autoidentificam como afrodescendentes, para dar conta de suas condições de vida e, no futuro, promover políticas que fortaleçam sua identidade coletiva. Os dados estatísticos são uma ferramenta poderosa para as mulheres, crianças e jovens afro, condição sine qua non para reconstruir melhor depois da pandemia. 

Também é fundamental, segundo o caso de cada país, estabelecer ou fortalecer instituições nacionais capazes de formular, implementar e dar seguimento a políticas públicas contra o racismo, xenofobia e outras formas de intolerância, para promover a igualdade racial com a participação ativa da sociedade civil. 

Na arena internacional, a Década Internacional de Afrodescendentes (proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas) é observada desde 2015 até 2024. Se trata de uma oportunidade inigualável para o mundo – América do Sul incluída – na qual a ONU, os Estados Membros, a sociedade civil e todos os atores interessados se articularam em torno de três eixos: reconhecimento, justiça e desenvolvimento. A Década é um convite para reconhecer a importância da cultura afro e remover todos os obstáculos que essas comunidades enfrentam para o gozo de seus direitos. Também insta aos Estados a promoverem um maior conhecimento e respeito a cultura, história e patrimônio dos povos afrodescendentes. 

Nesse espírito, e próximo de celebrar os 20 anos da Conferência de Durban sobre o racismo, no último 31 de agosto a comunidade internacional comemorou pela primeira vez o Dia das Pessoas Afrodescendentes, que busca reconhecer as contribuições da diáspora africana e combater a discriminação contra as pessoas e grupos afro. Esse reconhecimento promove a sensibilização das autoridades e demais atores sobre a necessidade de fomentar o desenvolvimento da população afrodescendente para que, de acordo com a visão da Agenda 2030, ninguém seja deixado para trás.

O enfrentamento ao racismo e a discriminação racial contra as pessoas afrodescendentes não é só um imperativo de direitos humanos no mundo ou uma dívida histórica para a América do Sul. É também uma forma mais efetiva de abordar tensões raciais e socioeconômicas que estão no centro da profunda desigualdade que caracteriza esse continente. Porque quando os distintos grupos populacionais se reconhecem e respeitam uns aos outros, se reforça a coesão social, a justiça, o desenvolvimento, e em síntese, o desfrute de todos os direitos humanos por todas as pessoas. 


*Jan Jarab é o represente para América del Sur do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. No Twitter: @ONU_derechos.

Preocupado/a com o mundo em que vivemos? Então defenda os direitos de alguém hoje. #ApoieOsDireitosHumanos e visite a página da web em http://www.standup4humanrights.org

ODS Relacionados

Rolar para cima
Rolar para cima