1 de fevereiro de 2023 – O representante para o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) na América do Sul, Jan Jarab, escreveu um artigo de opinião chamando a todos no Brasil para proteger ao povo Yanomami das consequências do reducionismo econômico.
Leia o conteúdo na íntegra:
Em maio de 2022, fui convidado para participar da celebração dos 30 anos da demarcação do remoto território Yanomami. Foi uma honra estar lá, na floresta tropical, junto com aqueles que tinham sido os protagonistas da luta pela demarcação do território, como o xamã Yanomami Davi Kopenawa, representantes dos povos Mundurukú, Kayapó e de povos que vivem no Xingú, assim como com a então deputada Federal Joenia Wapichana, além do escritor Ailton Krenak.
Ouvimos testemunhos poderosos de líderes Yanomami de todo o território. Alguns voltaram aos dias da demarcação e aos esforços subsequentes do Estado brasileiro, então liderados por Sydney Possuelo, à frente da FUNAI – que expulsou do território pelo menos 30 mil garimpeiros ilegais, em 1992. Muitos outros, no entanto, lidaram com a realidade atual. Os garimpeiros estão de volta e trazem mercúrio que envenena os rios, malária e outras doenças, trazem armas, álcool, abuso sexual de mulheres e meninas, e ruptura da sociedade tradicional Yanomami. A desnutrição infantil entre os Yanomami atingiu proporções dramáticas. No entanto, nos últimos anos, o Estado parece, em grande parte, tê-los abandonado, com apenas intervenções esporádicas para proteger o território e um declínio dos serviços de saúde e outras formas de apoio.
A demarcação do território Yanomami em 1992, e sua posterior libertação dos invasores, continua sendo uma referência na relação entre o Estado e suas populações indígenas, mesmo desde uma perspectiva internacional. Ela mostrou, enfaticamente, que onde o Estado tem a vontade política de proteger os povos indígenas, ele tem a capacidade de fazê-lo. E como sabemos hoje, ainda melhor do que há 30 anos atrás, o ato também ajudou a preservar a floresta tropical em benefício de todo o planeta, resguardando sua biodiversidade e seu valor na resistência às mudanças climáticas. Quando você sobrevoa por horas o vasto território Yanomami, vê vividamente o contraste entre a densa e ininterrupta floresta tropical e a terra fora do território, onde manchas de floresta são intercaladas com fazendas e estradas.
O problema é que muitas pessoas querem ver o tal “desenvolvimento”. Argumentam que os povos indígenas na Amazônia têm demasiadas terras que poderiam se tornar mais “úteis”. Querem que a mineração, a criação de gado e a agricultura em escala industrial se expanda nos territórios indígenas. Um projeto de lei que teria aberto territórios indígenas à mineração e outras atividades econômicas foi introduzido no Congresso brasileiro em 2022, assim como outro que facilitaria a retirada do Brasil da Convenção 169 da OIT, um tratado que protege aos povos indígenas.
Não é surpreendente, e isso não está acontecendo apenas no Brasil, mas também em outros lugares da Amazônia. Afinal, a história da América é construída sobre a narrativa da conquista da terra, da floresta e de seus habitantes originais. O drama dos garimpeiros trazendo a morte aos povos indígenas é um drama que ecoa as narrativas sangrentas dos conquistadores do século XVI. É a lógica utilitária do homo faber, que reduz uma floresta ao ganho econômico de curto prazo, ao invés de vê-la como um lar físico e espiritual de uma comunidade. É a lógica daqueles para quem o ouro é mais valioso do que a natureza e, em última instância, do que vida.
No entanto, como Ailton Krenak nos lembra no título de um de seus livros, a vida não é “útil”. Tal reducionismo econômico ameaça trazer a morte não apenas às comunidades indígenas; agora está ameaçando a sobrevivência de ecossistemas inteiros, e da própria humanidade em um planeta habitável. Devemos aprender com as histórias trágicas de conquista e genocídio, e parar de repeti-las.
Após a comemoração do ano passado na floresta, todos nós voltamos a pressionar o Governo para cumprir seu dever. Me encontrei com representantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para abordar a situação. Nós tornamos nossas preocupações visíveis através de declarações públicas, inclusive incluindo as declarações da então Alta Comissária Michelle Bachelet. Após nossa reunião, Luís Roberto Barroso, Ministro do Supremo Tribunal Federal, ordenou ao Governo que fornecesse informações sobre o que estava fazendo para a proteção dos Yanomami. Algumas operações policiais contra os garimpeiros foram realizadas, mas em geral, a resposta permaneceu tristemente insuficiente.
Retirar os garimpeiros mais uma vez do território Yanomami não será fácil. Hoje eles têm equipamento técnico superior e ligações com negócios “legítimos”, bem como com o crime organizado. E, claro, removê-los é apenas um passo para garantir mais benefícios do que danos aos Yanomami e outros povos indígenas. As comunidades indígenas são frágeis quando expostas ao poder esmagador da nossa civilização, e até mesmo intervenções bem-intencionadas podem ser um tiro pela culatra. Mesmo o contato amigável pode trazer epidemias, particularmente para as comunidades relativamente isoladas. A abertura de centros de saúde pode mudar a estrutura das aldeias tradicionais de forma inesperada. A introdução da economia monetária pode resultar na substituição de alimentos tradicionais por produtos importados de baixo valor nutricional, como a mandioca, o que pode contribuir para a desnutrição infantil.
A recente visita do Presidente Lula ao território Yanomami é um sinal muito encorajador de que a vontade política para enfrentar os dramáticos desafios está finalmente lá. O sistema da ONU no Brasil, que ofereceu sua assistência às autoridades, está pronto para contribuir no diagnóstico das causas e na busca de soluções. Há lições importantes a serem aprendidas por todos nós, com comprometimento, humildade e abertura para ouvir os próprios povos indígenas.
Artigo também disponível no UOL Brasil
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