31 de agosto de 2022 – A alta comissária de Direitos Humanos, Michelle Bachelet, concedeu uma entrevista à ONU News e falou sobre o final de seu mandato no cargo. Ela contou como os desafios dos últimos quatro anos, como a pandemia, as crises humanitárias, a mudança climática e novos conflitos pelo mundo deixaram o trabalho ainda mais complexo.
Uma das principais conquistas do período como chefe dos Direitos Humanos foi a aprovação de uma resolução que inclui o direito a um meio ambiente limpo como fundamental. Entre as dificuldades, Bachelet cita testemunhar a dor de pessoas vulneráveis, como no caso da minoria rohingya, em Mianmar. UNifeed. Durante sua viagem a Bangladesh, a Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, visitou estudantes rohingyas em Cox’s Bazar
Relações com a China
Ao falar de sua visita à China, ela afirma que foi capaz de expor às autoridades de Pequim as recomendações necessárias sobre a situação dos direitos humanos no país. Segundo Bachelet, a viagem foi um ponto alto de seu mandato, já que a última reunião de um alto comissário com o governo chinês havia sido há 17 anos.
A alta comissária afirma que estará à disposição de seu sucessor para dar aconselhamento e compartilhar as “lições aprendidas”. Confira a íntegra da entrevista, realizada pelo jornalista da ONU News em espanhol, António Lafuente.
“Uma tarefa interminável”
ONU News: Alta comissária de Direitos Humanos, Michelle Bachelet, obrigado por aceitar esta entrevista da ONU News. Há quatro anos, quando começou seu mandato, você disse em uma entrevista para a ONU News que a defesa dos direitos humanos é uma tarefa que não termina. Quais foram as principais coisas que você fez e o que não conseguiu resolver?
Michelle Bachelet: Bem, eu vou ter que responder novamente o que eu disse há quatro anos. É uma tarefa que nunca termina, então provavelmente há muitas coisas que não conseguimos fazer ou alcançar, porque não é algo que você pode alcançar como. Por exemplo, muitos de nós, com a sociedade civil, com outras agências, demos alguns passos importantes. A decisão da Assembleia Geral, de que existe o direito humano a um ambiente saudável e a luta contra a poluição. Essa foi uma luta de longa data da sociedade civil. Mas depois de uma parceria muito forte entre nós e a OMS, fazendo pressão, a resolução do Conselho de Direitos Humanos foi para a Assembleia Geral e aprovada por grande maioria ou forte maioria. Então, eu acho que isso foi muito importante. Acredito que a pior ameaça para a humanidade é o que chamamos de tríplice crise planetária: mudanças climáticas, poluição e perda de biodiversidade. Portanto, esta resolução, também graças ao Acordo de Paris e o engajamento dos Estados-membros seguirem a palavra, penso que este é um passo muito importante. Mas também temos outras coisas. Diria que assistimos a uma tendência no sentido da abolição da pena de morte. Mais de 170 países já aboliram ou estabeleceram uma moratória sobre a pena de morte e mais países anunciaram que vão na mesma direção. Isso eu acho uma notícia muito boa também.
Acredito que a pior ameaça para a humanidade é o que chamamos de tríplice crise planetária: mudanças climáticas, poluição e perda de biodiversidade.
Em alguns lugares, conseguimos apoiar as pessoas, para que suas vozes sejam ouvidas, para que as leis sejam alteradas para melhor, se assim posso dizer, em termos de proteção e promoção dos direitos humanos, direitos das mulheres ou direitos das crianças. Além disso, direi que temos trabalhado para a proteção dos defensores dos direitos humanos. Temos apoiado, com outras agências e com a Cepal, no sentido de facilitar o Acordo de Escazú na América Latina. É o primeiro acordo que questiona a importância da participação das pessoas em termos de mudança climática, mas também a importância de proteger os defensores do meio ambiente, sendo defensores indígenas ou defensores da terra, etc. Então, há muitas coisas grandes assim. Mas também pequenas coisas em todos os países, quando você pode discutir com o governo, apoiando a sociedade civil, para mudar algumas leis específicas ou para impedir que alguns projetos de lei sejam aprovados, que poderiam entrar em a direção errada. Mas é sempre um trabalho que tem que ter objetivos grandes e médios e pequenos, porque você tem que fazer tantas coisas diferentes por haver tantas áreas. Então, precisamos continuar trabalhando. Se algum alto comissário disser que está tudo feito, eu diria “não, isso não é a realidade”.© Ohchr/Anthony Headley. Bachelet também esteve na Burkina Faso
ONU News: Nestes quatro anos, os princípios dos direitos humanos passaram por duras provas, de uma pandemia sem precedentes a novas e inesperadas guerras, e de ataques aos direitos das mulheres, a golpes militares e novas ditaduras. Você acha que a evolução dos direitos humanos universais está em retrocesso?
MB: Bem, você está certo, o mundo mudou dramaticamente, eu diria, ao longo dos quatro anos. Claro, você já mencionou a pandemia e o impacto cada vez mais forte das mudanças climáticas. E agora estamos vendo os choques reverberantes da crise de alimentos, combustíveis e finanças como consequência da guerra na Ucrânia. Vimos também uma grande polarização no nível internacional, e observamos movimentos de protesto e golpes de Estado em Mianmar, em Burquina Fasso, na Guiné e no Mali, e também a tomada do Talibã no Afeganistão. Então, eu diria que isso não é algo que vai apenas em uma direção, porque por um lado, sim, você pode ver muitas coisas que estão indo na direção errada e não estão ajudando os direitos humanos. Além disso, durante a pandemia de Covid-19 alguns países usaram as restrições necessárias por causa da saúde. Alguns escolheram restringir a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, atitude que não é necessária para combater uma pandemia. Eu não sou alguém que acha que isso seja algo que não possa ser revertido.
Não podemos dar [os direitos humanos] como certo, porque ninguém pensou que uma nova guerra poderia acontecer na Europa. E nós temos uma. E pensávamos que os direitos humanos eram um dado adquirido, e não é. Vemos que os países que sempre falam sobre direitos humanos, não necessariamente os respeitam sempre. Diria que é uma luta constante e permanente não só ter consciência, mas apelar aos Estados-membros para que continuem com a sua responsabilidade que é proteger e promover, e apoiar a sociedade civil para que também possa fazer a sua parte. Por outro lado, vimos tantos movimentos importantes, jovens se manifestando pelo planeta, mulheres, a campanha Me Too, Black Lives Matter e todas as manifestações a favor do fim do racismo sistêmico e assim por diante. Eu diria que houve a reversão em algumas áreas, mas por outro lado, houve um passo importante em outras. Então, como sempre na vida, você tem momentos bons e momentos difíceis, e você tem que trabalhar com ambos.
ONU News: Quais foram os momentos mais difíceis para você pessoalmente no comando do Escritório de Direitos Humanos?
MB: Bem, existem diferentes aspectos. Às vezes você tem que lidar com casos individuais terríveis que realmente te tocam muito. Mas, por outro lado, quando você entra em um lugar e vê a dor das pessoas, como agora que acabo de voltar de Cox’s Bazar e conversei com rohingyas, vejo que eles estão pedindo a nós, a ONU, uma garantia para que possam voltar para Mianmar. E não podemos garantir agora, porque não temos as condições para que eles possam entrar de maneira segura. Por outro lado, você vê as pessoas lá cheias de energia e entusiasmo, e dispostas a voltar ao seu país.
Uma das questões que foi muito difícil, não só no mundo, mas também no escritório foi a pandemia de Covid-19 porque tudo mudou. Tivemos que aprender a nos adaptar à nova situação, a viver em circunstâncias diferentes. A paralisação, as quarentenas, foram muito complicadas para muitas pessoas, para nossos colegas com crianças pequenas e assim por diante. Tivemos que lidar com a falta de igualdade em termos de acesso a vacinas ou acesso a tratamento.
Olhando novamente como o Covid-19 desnudou todas as desigualdades do mundo, deixou tão claro, que depois que conseguirmos nos recuperar da pandemia, nosso objetivo não era voltar à normalidade, porque essa normalidade era muito ruim. Essa normalidade nos trouxe a esse ponto, mas também nos deu a possibilidade de discutir, o que queremos para o futuro. Por isso, começamos a falar sobre “reconstruir melhor”, mas agora estamos mudando isso para “reconstruir melhor para o futuro”, se assim posso dizer. Sempre que temos um problema, podemos ter oportunidades.© Ohchr/Anthony Headley. Michelle Bachelet se encontrou com a jovem ativista sueca Greta Thunberg na COP25 Madrid em 2019
ONU News: Se você tivesse que escolher, qual foi o momento em que se sentiu mais orgulho em ser alta comissária para os Direitos Humanos?
MB: Às vezes um pequeno triunfo deixa você muito feliz, e às vezes grandes questões como a mudança climática são realmente importantes, porque você sabe que está dando talvez um passo maior em direção à pior ameaça para a humanidade.
ONU News: Seu antecessor, Zeid Ra’ad Al-Hussein, disse no final do mandato que era melhor estar errado e se pronunciar do que ficar calado diante da injustiça. Você teve que ficar em silêncio algumas vezes ou se sentiu livre para sempre falar o que pensa?
MB: Bem, em primeiro lugar, sou uma subsecretária-geral da ONU. Então, toda vez que falo, falo como alto comissária. Sou sempre independente para dizer o que acho que tenho a dizer. Mas eu não falo como pessoa, eu falo como ONU, antes de tudo. É diferente se você é um cidadão ou uma ONG. A maneira como você fala pode ser diferente, porque você deseja determinados objetivos que podem não ser os mesmos de outras entidades. Mas, dito isso, sempre me senti livre para dizer o que achava que deveria ser dito, ou o que achava importante.
Às vezes você não tem outra escolha a não ser falar e com muita força. Em outras, você pode sentir que talvez possa usar estratégias diferentes, mas nunca senti que alguém me impôs a ficar em silêncio.
Claro que todos podem errar, mas principalmente, temos sempre que levar em conta o que queremos alcançar quando falamos. É tão fácil dizer as coisas, mas para mim tão importante quanto falar, e não ficar calado quando você não deveria calar, é ter resultados. É ter resultados positivos, dizer algo que possa ajudar a avançar para ajudar a resolver um problema. Então, eu sempre tento identificar o que há de melhor em cada situação, porque nem toda situação é igual. Às vezes você não tem outra escolha a não ser falar e com muita força. Em outras, você pode sentir que talvez possa usar estratégias diferentes, mas nunca senti que alguém me impôs a ficar em silêncio. Sempre me senti livre para dizer, ou não dizer, o que achava necessário.
Foto: © OHCHR. Bachelet encontrou-se com o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi.
ONU News: Uma de suas últimas viagens foi à China. O que sente que realizou?
MB: Bem, acho que em primeiro lugar, devo dizer, esta foi a primeira viagem de um alto comissário para os Direitos Humanos em 17 anos. Tive a oportunidade de me encontrar com autoridades nacionais, autoridades regionais e autoridades locais – autoridades provinciais . Pude transmitir todas as mensagens que achei importante que eles ouvissem de um alto comissário de Direitos Humanos e fazer nossas observações sobre coisas que deveriam mudar e como tudo – eu diria lei e política – deveria estar em conformidade com a lei internacional de direitos humanos, e pude dizer livremente tudo o que achava que precisava ser discutido com eles.
Foi importante porque não acontecia há muitos anos, você vê e sempre acredita que o diálogo é importante com todos, eu preciso ter um diálogo e uma relação e envolver todos os Estados-membros e todas as partes interessadas, e eu sempre penso: às vezes esse diálogo pode produzir bons resultados e às vezes não. Mas eu uso o mesmo com todos os países do mundo, e não mudo se for China, Reino Unido, EUA ou um país em desenvolvimento, definimos com eles alguns acompanhamentos.
Como para trabalhar no futuro com o Escritório de Direitos Humanos em termos de análise de certas leis que sentimos não estarem em conformidade com as leis de direitos humanos, mas também em termos de discussão de questões como minorias e direitos humanos, grupos étnicos e direitos humanos, liberdade de religião e direitos humanos, negócios e direitos humanos. É uma grande quantidade de temas que acreditamos serem essenciais, em áreas onde recebemos denúncias de violação de direitos humanos.
ONU News: O que você gostaria de fazer quando observa os direitos humanos sendo violados em conflitos como na Ucrânia, mas também daqueles como Iêmen ou Tigray?
MB: Continuamos trabalhando em todas essas questões. Mas gostaria que a comunidade internacional não esquecesse essas situações, e às vezes porque tantas coisas estão na agenda e algumas coisas ganham mais relevância na mídia politicamente falando. É que algumas delas, particularmente no conflito prolongado, sinto que estão esquecidas e as pessoas estão se sentindo abandonadas pela comunidade internacional.
Por exemplo, vemos no Iêmen que, apesar da trégua, há violações. E por isso achamos que o cessar-fogo é uma coisa boa, mas precisamos agora de diálogo e processos políticos e garantir a proteção dos civis. Acho que a redução da hostilidade melhorou a capacidade dos atores humanitários de apoiar o país. Mas apenas 41% do financiamento humanitário são cobertos, por exemplo. Se falamos sobre a Síria, vemos o conflito em nossas telas de televisão regularmente, mas uma das coisas que é importante é que ainda há a tarefa de procurar dezenas de milhares de pessoas desaparecidas. O secretário-geral vai lançar um relatório no qual estamos propondo um mecanismo sobre isso.
No Sahel, por exemplo, durante minha visita a Burquina Fasso, vi em Burquina, no Níger, no Mali, há tantas crises cruzadas por lá. Acho importante que a comunidade internacional intensifique seu apoio a essas situações. E no Haiti, por exemplo, vimos também, entre janeiro e junho deste ano, documentar 934 assassinatos e 680 sequestros na capital. Há confrontos entre gangues que significam que 38 mil foram deslocados internamente e violência armada e 5 mil crianças fora da escola. Esses números mostram por que o Haiti e essas outras crises devem permanecer na agenda internacional.
ONU News: algum conselho ou recomendação para o seu sucessor?
MB: Espero ter uma conversa pessoal com ele ou ela, seja quem for escolhido. Quero compartilhar minhas experiências, coisas que muitas vezes você não sabe antes de chegar nesta posição. Que eu possa oferecer de lições aprendidas. E meu conselho seria, para ser franca, envolver todos os Estados-membros com as partes interessadas, para explicar por que é tão difícil essa posição, porque ela pede que você seja a voz dos sem voz. Ao mesmo tempo que pede que você se envolva com os Estados-membros, dê assistência técnica, capacitação, mas também monitoramento e relatórios. Portanto, é um mandato bastante contraditório, que nem sempre facilita, mas existem maneiras de lidar com isso e navegar nisso. Então, eu quero dar a eles um conselho particular, em relação a cada um desses pontos.
Fonte: ONU News
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