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Força coletiva: no Brasil, mães de vítimas da violência do Estado se unem na busca por verdade, justiça e reparação

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Quatro mulheres integrantes do Grupo Mães de Manguinhos aparecem de costas, abraçadas e olhado para a favela à sua frente

BRASILIA (18 de maio de 2021) — “Uma rosa para a rosa mais linda do meu jardim! Feliz Dia das Mães, mãezinha. Eu te amo”, disse Victor Hugo de Jesus Pires ao entregar a flor feita de tecido para Ilsimar de Jesus, no domingo do Dia das Mães em 2018, segundo o relato da própria mãe. Foi o último Dia das Mães que passaram juntos. Pouco mais de um mês depois, Victor Hugo, aos 17 anos, e o seu amigo e quase xará Vitor Oliveira, de 18 anos, foram assassinados após serem confundidos com traficantes na periferia de São João do Meriti, cidade da Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro, Brasil.

Ilsimar de Jesus e o filho Victor Hugo, na última foto que tiraram juntos. (Crédito: Acervo pessoal)

“Meu filho era um menino carinhoso, feliz, brincalhão. Tinha uma gargalhada escancarada que faz falta dentro de casa hoje”, conta Ilsimar. “Ele viveu 17 anos, 2 meses e 4 dias, e nesse tempo todo poucas vezes eu o vi chorar, porque ele era apaixonado pela vida”. Ela compartilha sua dor com Elisabete Oliveira, mãe de Vitor, e com milhares de outras mães de vítimas da violência do Estado. Organizadas em grupos e coletivos por todo o país, essas mulheres apoiam umas às outras na luta por verdade, justiça e reparação.

Elisabete relata como têm sido seus últimos três anos: “Até hoje as instituições de justiça não nos deram uma resposta concreta. Apoio, mesmo, encontramos somente com as outras mães. Vemos novos casos acontecendo diariamente e procuramos guardar a nossa dor para ajudar essas mulheres. Enquanto isso, os policiais que mataram nossos filhos continuam trabalhando”, diz.

Elisabete Oliveira e o filho Vitor. (Crédito: Acervo pessoal)

Elisabete e Ilsimar fazem parte da Rede de Mães e Familiares da Baixada Fluminense e participaram de consultas realizadas pela ONU Direitos Humanos nos últimos meses com familiares de vítimas. Em diversas oportunidades, essas mulheres juntam vozes para manifestar a memória de seus filhos enquanto pedem pelo fim da violência desproporcional que afeta as comunidades em que vivem.

No dia 16 de abril deste ano, junto com representantes de outros coletivos e associações de parentes de vítimas, ambas participaram de audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a letalidade policial, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como “ADPF das favelas”. Trata-se de uma ação coletiva que serviu de base para que o STF determinasse a suspensão de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro no período de pandemia.

Enquanto esperam por justiça e reparação, além do apoio dos grupos e coletivos dos quais fazem parte, essas mães também contam com o acompanhamento de organizações como o Núcleo de Atenção Psicossocial a Afetados pela Violência de Estado (NAPAVE), que recebe apoio do Fundo Voluntário das Nações Unidas para Vítimas de Tortura. Desde 2017, quando foi criado, o Núcleo já atendeu mais de 400 pessoas com acompanhamento psicológico, médico e social. Segundo seus integrantes, desde o ano passado, por conta da pandemia da COVID-19, a metodologia dos atendimentos foi adaptada para meios virtuais ou atendimento telefônico. Além disso, um grupo de WhatsApp foi criado para organizar as sessões e também para que as pessoas atendidas possam acioná-lo em suas emergências, ou apoiar-se mutuamente nos momentos mais difíceis. “É um atendimento que nos abraça e nos sustenta”, agradece Ilsimar de Jesus.

Perfilamento racial

Integrante do grupo Mães de Manguinhos, Ana Paula Oliveira também fala sobre a força e a união dessas mães e sobre a importância de seguirem lutando por direitos e pela difusão da verdade. “Além da nossa luta particular, é muito importante que a gente consiga ter acesso às informações, ter um entendimento de por que essa violência é voltada para nós. Temos que ser multiplicadoras dessas informações porque isso é muito necessário para trazer discussões dentro das comunidades, nas famílias, com os nossos vizinhos. Para que todos possam entender melhor que tudo isso não é por um acaso, que não é apenas um despreparo da polícia”, diz.

Ana Paula Oliveira (a segunda, da esq. para a dir.) e mulheres integrantes do grupo Mães de Manguinhos. (Crédito: Acervo pessoal)

Em 2014, o filho de Ana Paula, Johnatha de Oliveira Lima, aos 19 anos, foi morto em Manguinhos, Zona Norte do Rio, com um tiro nas costas. “É inadmissível a gente ter um filho saudável, cheio de vida… Eles não adoeceram, não morreram por um acidente, por uma fatalidade”.

“Cada novo dia eu acordo e penso ‘caramba, estou viva mais um dia, estou aí e preciso ressignificar essa dor, preciso continuar a minha missão e dar um sentido para a minha vida’. E eu encontro esse sentido na luta pela preservação da vida das pessoas que estão aqui na favela”, afirma Ana Paula.

Em dezembro de 2020 ela participou de um encontro on-line sobre o impacto do perfilamento racial no acesso à justiça no Brasil, promovido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). O evento marcou também o lançamento, em português, de uma publicação sobre o tema, que traz a definição de perfilamento racial como o ‘processo pelo qual as forças policiais fazem uso de generalizações fundadas na raça, cor, descendência, nacionalidade ou etnicidade ao invés de evidências objetivas ou o comportamento de um indivíduo, para sujeitar pessoas a batidas policiais, revistas minuciosas, verificações e reverificações de identidade e investigações, ou para proferir um julgamento sobre o envolvimento de um indivíduo em uma atividade criminosa. O perfilamento racial resulta diretamente na tomada de decisões discriminatórias’.

Segundo o estudo independente “Atlas da Violência”, em 2017, 75,5% das vítimas de homicídio no Brasil eram pretas ou pardas. Entre os adolescentes e jovens de 15 a 19 anos do sexo masculino, os homicídios foram responsáveis por 59,1% dos óbitos.

“Está mais do que provado que o racismo existe, que ele nos afeta diretamente e que nossos filhos são os alvos,” desabafou Ana Paula na ocasião.

Esses mesmos questionamentos são levantados também por Rafaela Matos, mãe do adolescente João Pedro Mattos, morto a tiros dentro de casa, aos 14 anos, durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), há exatamente um ano, no dia 18 de maio de 2020 — uma semana após o Dia das Mães. “Eu nunca imaginei comemorar esse dia sem o meu filho. É uma dor imensurável”, desabafa.

Rafaela Matos e o filho João Pedro. (Crédito: Acervo pessoal)

“O Estado precisa dar uma resposta não apenas para nós, familiares, mas para toda a sociedade. Porque tudo que eles cometeram ali foi algo surreal. Invadir uma residência atirando, sem saber quem está dentro… Não acho que a polícia tenha sido treinada para isso”, diz. “Se fosse na Zona Sul [região do Rio de Janeiro que concentra bairros nobres] eles não agiriam dessa forma. Eu acho que eles bateriam na porta e pediriam permissão para entrar”.

Enquanto aguarda por justiça, Rafaela faz questão de contar para o mundo quem era o seu filho: “o João sempre foi um filho excelente, que gostava muito de estudar, frequentar a igreja e jogar futebol com os amigos. Ele tinha o sonho de ser advogado e nós tínhamos o sonho de vê-lo formado na faculdade. Era um menino alegre, divertido e que nos trazia muita felicidade”.


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